Reportagens

Fotos: Andressa Zumpano

Caravela à vista - os invasores não param de chegar

A BR 135 começou como um “pico” em terras quilombolas em 1942. Hoje é uma rodovia federal que compromete, diariamente, a qualidade de vida das pessoas atravessada pelo asfalto.

Maria plantou um pé de manga manteiga e esperou quatro anos pra ver ele crescer e botar. A manga manteiga – ou de massa, ou de quilo – tem esse nome por causa da sua textura. Derrete na boca quando madura. É grande, doce e carnuda, e tem o caroço pequeno.

 

Já botador, o pé de manga alimentava Maria, seu marido José, as vizinhas e vizinhos e os passantes da beira da BR 135, que margeia a casa de taipa do casal de lavradores no território quilombola Santa Maria dos Pinheiros, precisamente na comunidade de Colombo, zona rural do município de Itapecuru-Mirim, Maranhão.

 

Para o período do verão nordestino, entre junho e dezembro, quando as chuvas cessam e o sol arde mais, Maria criou um método de irrigação para não deixar a mangueira com sede. Fez um buraco de uns 30 centímetros no pé da árvore, e encaixou nele uma garrafa plástica de refrigerante sem uma das extremidades e com um furo na tampa, do outro lado, propiciando uma vazão lenta e contínua de água.

 

A garrafa funcionava como um acesso direto à garganta da terra e à boca da mangueira, suas raízes, que Maria hidratava até três vezes por dia com água fresca do poço artesiano.

 

Em um dia de maio de 2018, um operário do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes), no comando de uma escavadeira, arrancou o pé de manga manteiga. A operação durou menos de dez minutos.

 

Maria viu a derrubada, e quando a árvore ia tombando, foi pra dentro de casa para não chorar. Além da mangueira, o operário arrancou também três pés de jambo plantados por Maria. Próximos da mangueira, eles faziam uma sombra confortável na frente da casa dos lavradores.

 

Mesmo morto, um dos pés de jambo foi replantado pelos operários diante da residência do casal. Raquítica e com as folhas esturricadas pelo sol, a árvore ainda carregava uma numeração vermelha no corpo feita a tinta por um operário. O jambo morto, numerado, virou um estranho monumento diante da casa de taipa, um defunto em pé que vigia as obras de duplicação da BR 135.

Pra botarem mais asfalto na BR 135, cortaram as árvores de dona Maria.

A caravela atraca

Desde meados de 2017, o DNIT vem realizando obras de duplicação da BR 135 dentro de terras quilombolas e de comunidades tradicionais nos municípios de Miranda do Norte, Itapecuru-Mirim, Santa Rita e Bacabeira. Parte das obras estão irregulares.

 

O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) feito pela empresa Zago Consultoria a pedido do DNIT e conseguido pela reportagem via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostra que a autarquia não realizou a consulta prévia aos povos quilombolas e nem audiências públicas antes de começar as obras.

 

A consulta é uma obrigatoriedade prevista pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário desde 2002. Toda vez que obras ou ações do poder público ou setor privado impactarem territórios de povos indígenas e tribais – entre os quais estão os quilombolas –, a consulta deve ser realizada antes do início das ações e obras impactantes. 

 

Mesmo sem a consulta feita, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Maranhão (SEMA) concedeu à autarquia as licenças de instalação da obra.

Violações em série

O DNIT também desrespeitou condicionantes destas licenças, entre as quais, a obrigatoriedade de apresentar documento de anuência da Fundação Cultural Palmares (FCP) para a realização das obras em terras de quilombo.

 

A FCP é um dos órgãos federais responsáveis por garantir e implementar direitos dos quilombolas, mas nunca foi consultada pelo DNIT para a confecção do EIA e nem para a busca do documento de anuência.

 

Outra condicionante violada foi a proibição de suprimir vegetação e de realizar obras hidráulicas que afetem cursos d’água naturais. Só no Território Quilombola Santa Maria dos Pinheiros, em Itapecuru-Mirim, dos 12 igarapés existentes, 10 foram canalizados, entupidos ou tiveram seu curso alterado pelo DNIT.

A casa de taipa foi construída por seu Zé. Agora está avariada pela ação do DNIT, e periga não aguentar mais um período de chuva.

 

Na Vila Cearense, em Bacabeira, o entupimento de um igarapé pela autarquia deixou dezenas de famílias embaixo d’água em abril de 2018, período de chuvas fortes.

 

O mesmo aconteceu na comunidade Picos I, no Território Quilombola Santa Rosa dos Pretos. Ao desviar o curso de um igarapé e entupi-lo, o DNIT criou uma espécie de barragem à entrada da comunidade. Os quilombolas precisaram improvisar uma ponte com estacas para superar o obstáculo de água, que chegava à cintura de uma pessoa de estatura média.

 

As quatro árvores de Maria e José foram mortas para dar lugar a uma obra hidráulica realizada no curso de um igarapé que passa ao lado da casa dos lavradores. Uma cratera de 240m2 e cinco metros de profundidade foi aberta a cerca de quatro metros de distância da residência do casal.

 

Com as chuvas, as paredes da cratera cederam, e a casa ficou a apenas três metros de ser engolida pelo buraco. Dois dos cinco metros de profundidade foram preenchidos com concreto, além de ferragens e baldrames. O igarapé entupido transbordou e quase invadiu a residência do casal durante o período de chuvas.

Extermínio planejado

As primeiras denúncias sobre as violações de direitos quilombolas cometidas pelo DNIT foram protocoladas à Defensoria Pública da União (DPU) e ao Ministério Público Federal (MPF) em outubro e dezembro de 2017, respectivamente. Quem assinou as denúncias foi a Associação dos Produtores Rurais Quilombolas de Santa Rosa dos Pretos.

 

Ao terem acesso ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do DNIT, lideranças de Santa Rosa descobriram que a autarquia pretendia eliminar 345 imóveis ao longo dos 8 km do território que são margeados pela BR 135.

 

Esse trecho corresponde ao quilombo que leva o mesmo nome do território e é um dos principais núcleos dele. Com a demolição dos imóveis, o quilombo seria extinto.

 

Seriam derrubados comércios familiares, igrejas, terreiro de Tambor de Mina, clube comunitário, casa de farinha, casa de cozinha, além de centenas de árvores frutíferas que servem como fonte de alimento e renda.

 

Algumas dessas árvores são centenárias, como um pequizeiro plantado pelos escravizados de Guiné-Bissau que passaram a habitar Santa Rosa dos Pretos no século 18 e que permanecem hoje no território por meio de seus mais de quatro mil descendentes.

 

Ao ser questionado para reportagem do jornal Vias de Fato a respeito das desapropriações, o DNIT afirmou que o termo “desapropriação” é equivocado, uma vez que os quilombolas que estão na faixa de domínio do DNIT – 35 metros para cada lado a partir do eixo da pista – são “invasores”.

 

Sendo assim, diz o DNIT, o termo correto é “desocupação” da faixa de domínio, e não desapropriação dos quilombolas: desapropria-se quem é dono legítimo, remove-se quem é invasor.

Pequizeiro centenário plantado por escravizados recebe placa de metal que indica que será derrubado pelo DNIT. Foto: Sabrina Felipe

O povo maranhense… e os quilombolas

No contexto da construção de megaempreendimentos de infraestrutura logística, como ferrovias, estradas e portos, é comum o argumento, tanto do poder público quanto do setor privado, de que quilombolas e outros povos tradicionais são invasores das terras da União, e que por isso devem ser retirados dessas terras.

 

É dito também, nos discursos oficiais, de forma explícita ou implícita, que os empreendimentos de infraestrutura logística são realizados em nome do desenvolvimento, e que esses invasores são entraves ao progresso e ao interesse coletivo

 

É importante ressaltar que o projeto de duplicação da BR 135, de São Luís a Miranda do Norte, é um anseio do povo maranhense”, argumenta o DNIT para justificar a remoção de quilombolas da área que considera como sua.

 

A narrativa oficial constrói, de um lado, uma noção de ‘povo maranhense’, que não contempla os quilombolas; de outro, constrói a ideia de que os quilombolas são invasores, e que por isso ocupam o lugar do ilegítimo, daquele que pode ser eliminado em nome da nação”, reflete a professora de sociologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) Cíndia Brustolin, que há três anos realiza pesquisas junto aos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos.

A invenção do inimigo

A criação de um inimigo comum que se deve aniquilar é uma estratégia centenária de expropriação de terras e corpos. É usada pelo menos desde 1500, quando os primeiros invasores portugueses chegaram às terras de Pindorama, renomeando-a como Terra de Vera Cruz e, mais tarde, como Brasil.

 

Aos povos originários que encontraram nas terras chamaram de índios. Considerados selvagens pelos portugueses, os índios foram mortos e escravizados. Os que sobreviveram foram empurrados para dentro dos territórios e ali mantidos isolados pela ameaça constante da violência.

 

A invenção do inimigo ampara-se nas estruturas legadas pela invenção e hierarquização das raças. “A idéia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhecida antes da América. Talvez se tenha originado como referência às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados, mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre esses grupos”, explica o sociólogo peruano Aníbal Quijano.

 

Os colonizadores, segundo ele, utilizaram a cor e outras características físicas para agrupar os diferentes povos em diferentes raças, sendo os dominadores chamados de brancos, os povos originários de índios, e de pretos e pretas os homens e mulheres sequestrados no continente africano e trazidos ao Brasil para trabalhar na condição de escravizados anos após o início da colonização.

 

Como as relações estabelecidas eram de dominação, a raça não indicava apenas uma distinção física, mas sobretudo uma condição social “natural”. Assim, os brancos pertenciam a uma raça biologicamente superior – e portanto naturalmente apta a dominar –, e os pretos e índios pertenciam a raças biologicamente inferiores, e portanto naturalmente aptas a serem dominadas.

 

Nada, porém – muito menos a biologia –, comprovava a inferioridade ou superioridade de pessoas fisicamente diferentes, a não ser a ficção da superioridade racial inventada pelos colonizadores brancos, que deram interpretações arbitrárias e ideológicas a marcadores biológicos.

A normatização da barbárie

A normatização da ideia colonial de uma superioridade e inferioridade raciais foi possível graças ao uso da violência física e institucional ao longo dos séculos.

 

O mundo colonizado é um mundo dividido em dois. A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. (…) Nas regiões coloniais, o gendarme [militar] e o soldado, por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e frequentes, mantêm contato com o colonizado e o aconselham, a coronhadas ou com explosões de napalm [conjunto de líquidos inflamáveis usado como armamento militar], a não se mexer. (…) Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência. (…) O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado”, escreveu o psiquiatra e filósofo martinicano Franz Fanon.

 

Os açoitamentos e suplícios em praça pública; a abolição formal sem reparação econômica ou social; as políticas estatais de embranquecimento por meio do incentivo à imigração de europeus; a Lei de Terras de 1850, que permitia que só fossem donos de terras quem pudesse pagar por elas – o que excluía os escravizados –; a estruturação do sistema prisional como a senzala contemporânea; o confinamento dos corpos pretos nas favelas e periferias econômicas; o assassinato em série de pessoas pretas pelas forças de repressão do Estado; o trabalho escravo contemporâneo na indústria têxtil e na construção civil e outros tantos mecanismos institucionais de dominação e sujeição dos corpos pretos que seguem vigentes hoje: tudo ainda é colonial.

 

Estão vivas e em plena atualização as estratégias de manutenção da ficção da raça criada pelos primeiros invasores de Pindorama.

 

A estruturação da ideia de raça, diz Aníbal Quijano, “demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de dominação social universal, pois dele passou a depender outro igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais.”

A atualização da barbárie

Ao considerar os quilombolas invasores e adentrar seus territórios de forma ilegal e violenta, eliminando as árvores e igarapés que lhes dão alimento e renda, o DNIT atualiza a estratégia colonial da invenção do inimigo para justificar a expropriação de suas terras.

 

O argumento da autarquia de que as terras onde se assenta a BR 135 são da União não encontra respaldo nos registros orais e documentais de pertencimento, assim como o discurso colonial sobre uma raça superior a partir de diferenças biológicas nunca encontrou respaldo na natureza humana.

Interior da casa de dona Maria e seu Zé, de Colombo, no território quilombola Santa Maria dos Pinheiros, em Itapecuru-Mirim

 

 

A imposição e normalização dessa ficção, portanto, se dá pela violência, tanto institucional quanto física, sendo a institucional a violação de procedimentos legais, como a ausência da consulta prévia, e a física sendo a destruição de matas e cursos d’água com a consequente e progressiva eliminação de modos de vida tradicionais.

Deixo em herança as terras que roubei

A BR 135 foi aberta em 1942. Já as mais de 800 famílias – cerca de quatro mil pessoas – que vivem no território Santa Rosa dos Pretos são herdeiras diretas dos homens e mulheres sequestrados na Guiné-Bissau nos anos 1700 e trazidos ao Maranhão.

 

Eles foram obrigados a trabalhar na condição de escravizados nas fazendas da família irlandesa de sobrenome Belfort, que invadiu a região e se apropriou das terras conhecidas hoje como o território Santa Rosa dos Pretos, formado por 20 quilombos espalhados em 2.178 hectares – ou 21.780.000 m².

 

Joaquim Raimundo Nunes Belfort, da família dos invasores e chamado de “Barão de Santa Rosa”, teve um filho com a ex-escravizada América Henriques. Em 1898, Belfort assinou um testamento onde deixava as terras que roubou em Itapecuru-Mirim para América, para o filho Américo, e para “todos aqueles que me serviram como escravos, durante sua vida e a dos seus, não podendo em tempo algum serem vendidas, alienadas, ou dadas em pagamento as ditas terras que constituem um patrimônio perpétuo aos acima declarados e seus descendentes.”

 

Tanto a oralidade ancestral quanto a formalidade contemporânea dos documentos confirmam a presença centenária dos pretos e pretas da Guiné-Bissau em Santa Rosa.

 

Eu sou contra quererem invadir aqui e dizer que a gente invadiu. Aqui não! Eu conheci isso aqui com mata legítima. O barão deixou isso aqui, mas foi na ponta da chibata, não foi de graça não”, declara Paulo Leonel Pires, de 93 anos. Seus antepassados guineenses viveram em Santa Rosa dos Pretos quase 300 anos antes da chegada da BR 135. “O DNIT é invasor, nós não”, conclui Pires.

O “interesse público”: a sofisticação das estratégias coloniais

As violações cometidas pelo DNIT no processo de duplicação da BR 135 não são novas. Elas foram utilizadas em 2009, também em Santa Rosa dos Pretos, pela mineradora transnacional Vale S.A. durante o processo de duplicação da Estrada de Ferro Carajás (EFC).

 

As obras tiveram início sem a consulta prévia obrigatória; as licenças foram emitidas pelo Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) de forma irregular; matas e igarapés foram destruídos.

 

E o principal: para legitimar a expropriação das terras centenárias dos escravizados e seus descendentes, a Vale alegou que os quilombolas de Santa Rosa ocupavam de forma ilegal terras que a União supostamente concedera à empresa.

 

Em janeiro de 2009, a Vale apresentou contestação ao Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do território feito pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e publicado no Diário Oficial da União em outubro de 2008.

 

O RTID é parte inicial e fundamental do processo de titulação. Nele são apresentadas provas da ancestralidade quilombola e são definidos os limites geográficos do território a ser titulado. Com a impugnação do RTID pela transnacional, o processo de titulação foi paralizado.

 

A empresa alegava que a delimitação feita pelo Incra, que excluía de Santa Rosa uma área de 7,1630 hectares (71.630 m²) referentes à área ocupada pela EFC desde 1985, quando foi inaugurada, era insuficiente para executar o projeto de duplicação, sendo necessária a apropriação de mais 70 metros para cada lado da ferrovia ao longo do trecho a ser duplicado, totalizando 6,9502 hectares (69.502 m²).

 

Para defender seu suposto direito àquelas terras, a Vale citou um decreto de 1982 – atualizado por outro em 1997, quando foi privatizada –, no qual o governo brasileiro outorga à mineradora uma concessão de construção e operação da ferrovia. Por meio desse decreto, a transnacional reivindicou como suas as terras quilombolas de Santa Rosa dos Pretos que dizia serem necessárias à duplicação.

 

Assim como o DNIT, a Vale também recorreu ao argumento de interesse público do empreendimento, isolando os quilombolas enquanto grupo antagonista que deve se curvar a esse interesse.

 

Por certo, os interesses da comunidade quilombola (…) hão de se compatibilizar com o interesse público, particularmente no que se refere ao desenvolvimento nacional e uso das terras necessárias às vias de transporte ferroviário. Assim, deve-se reservar as áreas necessárias acima referidas no processo de delimitação e demarcação da comunidade de remanescentes quilombolas Santa Rosa”, escreveu a empresa.

 

Cansar para ganhar

Menos de um mês após o pedido de impugnação, a procuradora federal do Incra Ismênia Maria Gama de Carvalho emitiu um parecer fazendo eco à Vale e relativizando o direito ancestral e constitucional dos quilombolas de terem a propriedade definitiva de suas terras.

 

De acordo com Ismênia, tal direito “eventualmente poderá ter de ceder ante necessidades nacionais e inequivocamente mais valiosas enquanto ligadas à segurança do Estado, da sociedade, ou limitador de valores fundantes do Estado de Direito, da República e da Federação, desde que cumpridamente demonstradas pela autoridade competente.”

 

Em maio de 2009, outro procurador federal do Incra, Luis Fernando Pedrosa Fontoura, apresentou parecer contrário ao pedido de impugnação do RTID de Santa Rosa dos Pretos pela Vale. Em junho foi a vez da antropóloga do Incra Fernanda Lucchesi, responsável técnica pelo RTID, fazer a contestação da impugnação.

 

Em setembro daquele ano, o Comitê de Decisão da Superintendência Regional do instituto decidiu pelo indeferimento da impugnação. Em fins de 2009, a Vale interpôs recurso ao indeferimento, iniciando um processo de cerca de dois anos de idas e vindas de pareceres técnicos e jurídicos.

 

Com exceção do parecer da procuradora Ismênia Maria Gama de Carvalho, todos os demais foram contrários à impugnação.

 

Ainda assim, o desgaste provocado pela Vale às comunidades foi imenso. Por meio de reuniões, visitas técnicas e um sem fim de burocracias estranhas à rotina das comunidades, a transnacional cansou a resistência.

 

Mais que isso, a Vale conseguiu manter suspenso por três anos o processo de titulação – que já é demorado –, gerando na comunidade grande insegurança sobre se um dia iriam conseguir retomar as etapas legais do processo a caminho do título definitivo.

 

Com essa estratégia, a empresa alcançou a negociação, chegando aos termos finais da chantagem jurídica que criou: a Vale se comprometeu a retirar a impugnação ao processo de titulação de Santa Rosa dos Pretos em troca das terras que faltavam à duplicação da EFC.

 

Em 8 de março de 2012, o acordo foi assinado entre a transnacional, quilombolas, Ibama, Incra e a Fundação Cultural Palmares. Dos compromissos firmados pelas partes – como a recuperação, pela Vale, dos igarapés que ela destruiu –, apenas os quilombolas cumpriram 100% do trato, abrindo mão da porção de terra expropriada pela Vale em manobra jurídica.

 

Hoje, fins de 2018, a duplicação da Estrada de Ferro Carajás está quase concluída, com 542 km duplicados do total de 637 km. Já as terras de Santa Rosa dos Pretos ainda não foram definitivamente tituladas.

 

O decreto de desapropriação das fazendas sobrepostas ao território foi publicado em 22 de junho de 2015 pela presidenta Dilma Rousseff. Desde então, quilombolas de Santa Rosa aguardam o governo federal liberar a indenização aos fazendeiros para que saiam das terras e estas sejam finalmente tituladas.

Atualização do passado

O passado é uma coisa que está acontecendo agora”, diz o herói de 600 anos da animação brasileira “Uma história de amor e fúria”. Nascido como um guerreiro Tupinambá no século 15, o protagonista conta sua saga de seis séculos, até 2096, tendo que lutar por aquilo que sempre foi seu e de seu povo: as terras e bens naturais roubados primeiro pelos invasores europeus em 1500, e depois pelos sucessores desses primeiros invasores até fins do século 21.

 

O passado nunca deixou de acontecer no território quilombola Santa Rosa dos Pretos.

 

Desde fins do século 19, o testamento das terras deixado pelo colonizador irlandês foi adulterado por gestores públicos donos de cartórios em parceria com descendentes de escravizados em busca de ganhos privados à custa do bem coletivo – reprodução das relações coloniais que se impõem à mente do colonizado pelo afeto, pela violência e pela necessidade material, obrigando-o a negociar como os brancos e com os brancos.

 

Porções de terras foram vendidas a fazendeiros; cercas se estenderam sobre parte das terras que sequer foram compradas; outras porções simplesmente foram tomadas pelos governo federal e estadual para a construção de obras de infraestrutura logística e de energia.

 

Santa Rosa dos Pretos comporta dois linhões da Companhia Energética do Maranhão (CEMAR) e três da Eletronorte, três estradas de ferro – uma via da Transnordestina, que liga São Luís (MA) a Teresina (PI), e duas da Estrada de Ferro Carajás (EFC), da Vale S.A. – e a própria BR 135, que agora o governo federal pretende duplicar, comendo novas porções de terras quilombolas.

A BR 135 começou como um “pico” por dentro de terras quilombolas em 1942. Hoje é uma rodovia federal que compromete, diariamente, a qualidade de vida das pessoas atrevessadas pelo asfalto.

 

Tais estruturas foram assentadas sobre terras produtivas, retirando dos quilombolas as áreas de roça fundamentais para sua subsistência. “O roubo das terras esvaziou nossa mesa”, resume Anacleta Pires da Silva, 52 anos, uma das principais lideranças de Santa Rosa dos Pretos.

 

Os quilombolas do território nunca receberam indenizações ou reparações pelos danos ambientais, sociais e culturais sofridos ao longo de décadas.

 

O Incra Federal, responsável pela titulação das terras quilombolas, procura legalizar a tomada indevida das terras ao excluir do documento oficial que dá os limites do território mais de 180 hectares – quase dois milhões de metros quadrados de terras – referentes às áreas ocupadas pelos linhões, pela BR 135 e pelas ferrovias.

Levante quilombola

Antes mesmo de protocolar as denúncias à DPU e ao MPF em fins de 2017, lideranças de Santa Rosa dos Pretos pararam as obras ilegais em seus territórios. Em outubro daquele ano, dirigiram-se ao canteiro de obras e exigiram que funcionários do DNIT retirassem as máquinas de suas terras.

 

Depois de protocoladas as denúncias, a SEMA suspendeu as obras nos quilombos dos municípios de Itapecuru-Mirim e Santa Rita em fevereiro de 2018. Em maio, o MPF seguiu a decisão da SEMA e notificou tanto a secretaria quanto o DNIT com uma recomendação para que não retomem as obras e nem atualizem licenças antes que novos estudos de impacto sejam produzidos e que a consulta prévia seja realizada nos termos da Convenção 169 da OIT.

 

Em agosto de 2017, o MPF ampliou a mesma decisão às terras de quilombo do município de Miranda do Norte.

 

Desde a primeira reunião [com o DNIT] foi visto e reconhecido que não houve [oitiva prévia]. Essa responsabilização do DNIT a gente vai buscar quando precisar, eventualmente, judicializar essas questões, se os danos que já foram evidenciados não forem supridos nesse processo de diálogo e de resolução extra-judicial que se iniciou meses atrás”, revela o procurador da República Hilton Araújo, responsável pela abertura do inquérito civil que investiga as ações da autarquia.

 

Sobre a consulta aos quilombolas afetados pela duplicação, o DNIT informou que “tem atendido os pedidos de esclarecimentos do MFP e da DPU, e que tem o máximo interesse em definir com rapidez as comunidades que devem ser consultadas de forma a atender à legislação e dar celeridade ao avanço dessa obra que é fundamental a todos os maranhenses.”

 

Em esforço conjunto, DPU e MPF estão realizando trabalhos junto às comunidades, à universidade e a órgãos do governo federal, como Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e FCP (Fundação Cultural Palmares), para mapear – e posteriormente consultar – as comunidades que serão afetadas pela duplicação em um raio de 40km a partir do eixo da pista, conforme determina a Portaria Interministerial 60. A portaria disciplina a atuação de órgãos públicos em processos de licenciamento ambiental.

 

A autarquia afirma que não é possível dizer, nesse momento – meados de novembro de 2018 –, quando as obras de duplicação serão finalizadas. Afirma, no entanto, “que nos próximos meses todos os entraves relativos às indenizações e desapropriações serão resolvidos, além das questões quilombolas ainda pendentes.”

Arrogância colonial

Mesmo com as obras paralizadas, moradoras e moradores de Colombo pararam as obras da duplicação por pelo menos cinco vezes em 2018 ao flagrarem o DNIT violando a ordem de suspensão em seu território.

 

Na primeira vez, cerca de 30 pessoas se reuniram na casa de dona Maria e seu José para impedir que a autarquia terminasse as obras hidráulicas que levariam abaixo a residência do casal de lavradores.

 

O defensor público da União Yuri Costa, que dá assistência às comunidades afetadas pela duplicação da BR 135, vê com preocupação esse tipo de estratégia de fragmentação de grandes empreendimentos adotada por governos e empresas privadas.

 

“A continuidade da obra de forma fatidada fragiliza a atuação e organização das comunidades impactadas. Isto porque, mesmo que de forma fragmentada, a construção do empreendimento cria um ‘fato’, que é o início das obras – ainda que não em sua totalidade –, de forma concomitante à atuação das comunidades organizadas e das instituições que as assistem, como a DPU.”

 

O fato criado, explica o defensor público da União, reduz as chances de sucesso de uma ação judicial ou extra judicial no sentido de garantir o cumprimento dos direitos das populações afetadas, uma vez que governos e empresas tentam trabalhar a ideia de que o empreendimento já está consolidado – ainda que não esteja finalizado – e que, portanto, não caberia uma suspensão ou paralização das obras de algo que já está praticamente concluído.

A luta também se atualiza

Se o passado acontece hoje e a história das expropriações coloniais se atualiza, também se renovam as resistências e lutas, as mesmas que deram origem aos quilombos nos séculos da escravidão formal.

 

Os territórios de Santa Rosa dos Pretos e Santa Maria dos Pinheiros, em Itapecuru-Mirim, e Joaquim Maria, em Miranda do Norte, estão articulados em atividades de formação política e ações de resistência e fortalecimento para fazer frente às violações do DNIT.

Dona Maria produz molho de pimenta com a malagueta que planta em seu quintal. A relação que ela tem com a terra é de vida

 

A Lei de Acesso à Informação (LAI) é arma fundamental no processo. Os documentos públicos conseguidos por meio da LAI são compartilhados e discutidos entre os quilombolas; entidades consideradas aliadas são acionadas dentro e fora do Maranhão para atividades de formação, divulgação de notícias, apoio jurídico, logístico e outras demandas.

 

Em junho de 2018, foi lançada uma campanha nacional pela consulta prévia aos povos quilombolas do Maranhão afetados pelas obras da BR 135. A campanha não tem data para terminar, e seu foco é o processo de fortalecimento interno das comunidades antes do início do procedimento formal de consulta.

 

Pela defesa de suas terras e bens naturais, os quilombolas de Santa Rosa dos Pretos, de Santa Maria dos Pinheiros e de Joaquim Maria estão se apropriando de armas e estratégias contemporâneas, mas seguem guarnecidos pela ancestralidade secular dos pretos e pretas que os antecederam na luta.

 

De longe eles avistam as caravelas atracadas, e se preparam para impedir que dessa vez os invasores desembarquem e se instalem em suas terras.