Reportagens

Fotos: Andressa Zumpano

Sequestrados na Guiné-Bissau, roubados no Maranhão

Anacleta Pires da Silva ainda sente na mente e na carne, 17 anos depois do ocorrido, a dor do dia em que juntou pedaços da filha no asfalto da BR 135.

Os impactos causados pela Estrada de Ferro Carajás, da Vale S.A., e pela BR 135, do governo federal, atualizam na vida dos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos as mesmas violências que seus antepassados sofreram durante a escravidão formal: roubo de suas terras, fome e morte.

 

Na primeira noite dormida em uma casa margeada pela BR 135, o descanso é interrompido inúmeras vezes durante a madrugada. Buzinas, acelerações e freadas entram nos sonhos e os transformam em pesadelos. O corpo gelado e os olhos arregalados após mais um susto buscam no turvo alguma orientação.

 

Ao longo de uma semana, os ruídos da rodovia na madrugada são sempre um anúncio de desastre. Mas depois, com o tempo, alguma coisa muda. E essa coisa é a própria vida, que vira um contínuo sobressalto, tanto no sono como na vida desperta.

 

Há 72 anos, os moradores do território quilombola Santa Rosa dos Pretos, em Itapecuru-Mirim, Maranhão, não poderiam imaginar que uma simples picada aberta no meio da mata pelo governo federal se transformaria em uma rodovia asfaltada que roubaria seu sono, suas árvores, seus igarpés, suas terras e mesmo suas vidas e as de seus familiares.

 

No quilombo Santa Rosa dos Pretos, um dos principais núcleos do território de mesmo nome, é difícil encontrar alguém que não tenha perdido um parente atropelado na BR 135.

“Uma doidiça essa estrada”

Um dia antes de esta reportagem começar a ser escrita, a menina Vitória, de oito anos, foi atropelada por um motoqueiro. Sob a supervisão do pai, que a esperava do outro lado da rodovia de pista simples, Vitória aguardava para atravessar a BR.

 

Ela estava perto de uma das duas únicas faixas de pedestres que existem nos 8 km de estrada que rasgam o quilombo – ambas, assim como radar e lombada, só foram implantados pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) após protestos por causa da morte, em maio de 2008, de Claudiane Cabral Sales, de 11 anos, atropelada no acostamento quando voltava do colégio.

 

A faixa fica na mesma altura do radar de fiscalização eletrônica de velocidade, que obriga os motoristas a reduzirem de 80 para 40km por hora. O trânsito estava engarrafado – era dia 9 de setembro, domingo, volta do feriado da Independência.

 

Ao avistar a menina, um motorista parou para que ela atravessasse. Foi quando o pai, observando o trânsito e avaliando que a travessia era segura, deu sinal para Vitória prosseguir. Nada disso, porém, impediu que um motoqueiro surgisse de surpresa entre os carros, em alta velocidade, e atingisse a criança.

Imprudência de motoristas é ameaça constante aos quilombolas que têm a vida atravessada pela BR 135.

Vitória foi arrastada por alguns metros. Teve parte da pele da perna direita arrancada pelo atrito com o asfalto, e a boca rasgada por dentro e por fora com o impacto. O motoqueiro fugiu sem prestar socorro.

 

Minha fia, chegou uma hora aqui que a gente não podia sair de casa, que era carro passando nas duas pista e no acostamento, tava uma doidiça essa estrada”, conta Anacleta Pires da Silva, 52 anos, uma das lideranças do território, sobre a tarde em que Vitória foi atropelada.

Juntando pedaços

 

No dia 31 de julho de 2001, foi a própria Anacleta que se viu no meio da BR 135 juntando pedaços da filha de cinco anos atingida por um motorista.

 

Ela foi alertada pelos vizinhos de que Jôsedalia, a caçula dos seus quatro filhos, tinha acabado de ser atropelada e morta. Ao chegar à pista, viu pedaços de carne espalhados. Saiu juntando o que conseguia e ia empilhando nas mãos, como se pudesse recompor a criança que acabava de ser despedaçada.

 

Uma pessoa aproximou-se dela com Jôsedalia no colo, viva, com apenas alguns arranhões, e disse: “ei, mulher, tua filha tá aqui, pega, ela tá bem”.

 

Mas Anacleta estava cega de dor, e onde havia pedaços de galinha depenada que caíram da sacola de compras de um garoto que também foi atingido, ela enxergava a filha em pedaços.

 

Foi uma coisa assim sem explicação, descontrolada da mente. Me diziam ‘não é tua filha, não é tua filha’, e eu dizia ‘é sim, é sim, vocês não querem me ajudar a juntar os pedaço da minha filha’”, relembra a quilombola de Santa Rosa dos Pretos.

Infraestrutura de segurança escassa

A violência dos motoristas que cruzam a BR 135 desconhece limites de velocidade, sinalização e trechos de acostamento, e é potencializada quando não encontra nenhum desses obstáculos devido à escassa infraestrutura de segurança, que deveria ser implementada pelo DNIT.

 

De acordo com a autarquia federal, em cerca de 76 km de extensão da BR 135, que compreende o trecho a ser duplicado enter os municípios de Bacabeira, Santa Rita, Itapecuru-Mirim e Miranda do Norte, existem, hoje, 22 lombadas físicas, 12 travessias de pedestres e 14 controladores eletrônicos de velocidade.

 

Numa divisão igualitária dessas infraestruturas de segurança entre os quatro municípios, cada um deles teria 5,5 lombadas físicas, três travessias de pedestres e 3,5 controladores eletrônicos de velocidade no trecho de BR.

 

Questionado sobre a quantidade dessas infraestruturas que seria instalada no referido trecho após a duplicação da BR 135, o DNIT informou que ainda não é possível mensurar, pois “novos estudos e projetos estão em fase de elaboração para se adequar as novas características do trecho a ser duplicado.”

 

Sobre a implantação de infraestrutura de segurança no trecho já duplicado da BR 135, entre Campo de Peris e Bacabeira, a autarquia informou que “atualmente o DNIT, por meio do Programa BR-Legal e do Programa Nacional de Controle de Velocidade (PNCV), está concluindo o projeto de sinalização e segurança que melhor se adequa ao trecho em questão.”

 

A Mina sentiu

Há dez anos, Sebastião Pires, de 65 anos, pedavala de volta para casa após o trabalho e precisou cruzar uma ponte que não tinha acostamento. Foi atropelado pelo motorista de uma ambulância do município de Coroatá.

 

Ironicamente, o motorista da ambulância seguiu viagem sem prestar socorro. Sebastião morreu na hora. “Que eu tenha conhecimento, já morreram mais de dez pessoas nessas pontes sem acostamento”, diz Jorge Luiz Brito da Silva, 58 anos, amigo do falecido.

Bastião, abatazeiro guia do terreiro de Mina, entrava na mata de Codó como ninguém. A Mina sentiu sua ausência.

Bastião, como o chamavam, era abatazeiro guia do terreiro de Mina “Tenda Nossa Senhora dos Navegantes”, de Santa Rosa dos Pretos. A viúva dele, Francisca Silva Pinto, de 65 anos, é guia do mesmo terreiro, comandado por sua irmã, Mãe Severina Silva, 64 anos.

 

A responsabilidade do abatazeiro guia é que tá tudo ali pelas mãos dele. Chamar os amigos, conversar com os amigos, dizer a hora de começar e terminar. O que ele disser tá dito. O guia tem a força e o poder pra chamar os caboclo. Tem abatazeiro que bate, mas bate por bater. Ele batia porque sabia, porque chamava, porque podia. Pensa num abatazeiro pra entrar na mata de Codó [morada dos Encantados], pra entrar na mata direitinho… pelo amor de Deus. Eu luto pra achar uma pessoa pra entrar na mata de Codó que nem o Bastião. Entrava direitinho, entrava lento.”

 

Quando seu Sebastião faleceu, a Mina sentiu?

Ôxi!

Como sentiu?

Não lhe explico. De ser doído é. Eles num fala, mas sabe. Num fala porque num pode falá. Num diz porque num pode dizê. E fazê o quê?

Nenhuma vida escapa

Além de pessoas, morrem atropelados os cães e gatos de estimação, e as galinhas e porcos criados pelos quilombolas para venda e consumo próprio.

 

Com a passagem da estrada e o aumento do fluxo de caminhões transportando os grãos do agronegócio, os porcos e galinhas, que antes ciscavam no fundo dos quintais, começaram a ir para o acostamento atrás da soja que cai dos caminhões.

 

Basta caminhar pelo acostamento para encontrar suas carcaças, além dos corpos de lagartos, camaleões, cobras, macacos e tamanduás. Com a perspectiva de duplicação da BR, o temor dos quilombolas é de que a morte de pessoas e animais também aumente.

Omissão conveniente

Apesar de dizer publicamente e no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da BR 135 que a duplicação aumenta a segurança de pedestres e motoristas, o DNIT não menciona em afirmações os dados de acidentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) que provam justamente o contrário.

 

Segundo informações de 2007 a 2017 disponibilizadas pela PFR, o trecho da BR 135 que já se encontra duplicado no Maranhão, que vai do KM 0 ao 25, responde por 59,4% de todos os acidentes ocorridos entre o KM 0 ao 125.

 

O trecho duplicado corresponde a 20% dessa extensão de 125 km, mas responde por mais da metade dos acidentes registrados nela.

 

No EIA da duplicação, o DNIT não garante que construirá nenhuma estrutura que dê segurança a quem só se desloca pela rodovia a pé ou de bicicleta.

 

Estas e outras evidências de que a autarquia federal tende a negligenciar a segurança de pedestres foram apresentadas ao Ministério Público Federal (MPF) e à Defensoria Pública da União (DPU) em um parecer técnico assinado por geógrafos de São Paulo e Maranhão.

Atropelo seletivo

Nenhuma consulta foi feita aos quilombolas para a abertura do pico da BR, nem qualquer indenização foi paga. Em 1942 não existiam leis que garantissem aos quilombolas o direito à terra e ao território. Hoje existem leis estaduais, federais e internacionais que tratam especificamente dos direitos de povos quilombolas e indígenas, mas o DNIT ignorou todas elas em 2017 para iniciar a duplicação da BR 135 dentro de territórios quilombolas do Maranhão. Eles não foram consultados sobre a instalação do empreendimento em suas terras; a autarquia federal não prevê qualquer indenização a esses povos e tão pouco reconhece seu direito à terra e ao território.

Atropelo de ferro

O progresso é como um motorista de caminhão vindo por uma estrada e que, ao encontrar uma pessoa preta, passa por cima, pois é como se essa pessoa fosse transparente. “É assim que o progresso vem atropelando os territórios tradicionais.”

 

A metáfora e a frase entre aspas são do militante do movimento negro, professor e doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) José Carlos Gomes dos Anjos. Para ele, o que torna o corpo e o território preto transparentes e “atropeláveis” é a herança do colonialismo europeu sobre o mundo.

 

“A sociedade constituída a partir da colonização europeia é estruturalmente perpassada por um certo padrão de relações de poder em que tanto as autoridades estatais quanto os agentes que ocupam posições dominantes em instituições não estatais se sentem livres para dispor da corporalidade e das territorialidades negras, como se fossem meros prolongamentos da natureza a serem explorados pelo homem branco e pelos padrões civilizatórios brancos. As pessoas e as instituições se organizam estrategicamente para invadir esses espaços ocupados por corpos negros, por vidas negras”, explica Dos Anjos.

Ao assorear igarapé, Vale deixou Dalva e outras centenas de quilombolas sem peixe pra comer.

Trabalho escravo na BR 135

Libânio Pires, de 84 anos, uma das principais lideranças de Santa Rosa dos Pretos e memória histórica viva do quilombo, afirma que na época da abertura do pico do que seria a BR 135, em 1942, quilombolas foram submetidos a trabalho escravo nas obras.

 

O pai e o tio, ele conta, carregavam no ombro, em dupla, toras de palmeira de babaçu que seis homens juntos não aguentariam. “Eles eram muito fortes, mas faziam isso porque queriam ou porque tinham medo de não fazer?”, questiona o ancião.

 

Do quilombo Santa Rosa dos Pretos, Libânio relata que os homens retiravam no braço e na pá a terra utilizada na formação da base do que seria a BR.

 

A compactação da terra também era feita no braço, com um instrumento improvisado chamado soquete: um disco feito com uma tora espessa de madeira e um cabo encaixado no meio do disco, usado para suspendê-lo e com ele socar a terra.

 

Na aquarela intitulada “Calçadores”, de 1824, o pintor francês Jean-Baptiste Debret mostra exatamente o mesmo trabalho sendo realizado por dois pretos na compactação de uma calçada no Rio de Janeiro escravagista – a abolição formal só aconteceria em 1888.

 

Pelo trabalho pesado na abertura do pico da BR 135, Libânio conta que os pretos de Santa Rosa recebiam fichas a serem trocadas por dinheiro. Era preciso juntar muitas fichas, ele diz, para conseguir alguma “tutaméia”, como se referiam os mais velhos a uma mixaria.

Libânio Pires garante que não havia brancos na construção do primeiro pico da BR. Só pretos, caboclos e vermelhos. Os brancos eram “pra mandar”.

Com ou sem lei

Em 1942, nenhuma consulta foi feita aos quilombolas para a abertura do pico da BR, nem qualquer indenização foi paga. Naquela época não existiam leis que garantissem aos quilombolas o direito à terra e ao território.

 

Hoje existem leis estaduais, federais e internacionais que tratam especificamente dos direitos de povos quilombolas e indígenas, mas o DNIT ignorou todas elas em 2017 para iniciar a duplicação da BR 135.

 

Mais uma vez, os quilombolas não foram consultados sobre a implantação do empreendimento que poderá comer porções ainda maiores de suas terras; a autarquia federal não previu indenização a esses povos e tão pouco reconheceu seu direito à terra e ao território.

Atropelo de ferro

Em 1982 começou a ser aberto o pico que daria espaço à Estrada de Ferro Carajás (EFC), da então estatal Companhia Vale do Rio Doce, hoje a transnacional privada Vale S.A. Assim como no pico da BR, não houve consulta aos quilombolas, nem indenização.

 

Inaugurada em fevereiro de 1985, a malha da EFC tem 972 km de extensão, e vai de Parauapebas, no Pará, até a capital maranhense, onde descarrega o minério de ferro extraído pela empresa da mina de Carajás (PA), além de combustível e grãos.

 

Ao todo, 23 municípios no Maranhão e quatro no Pará são cortados pela ferrovia, entre os quais estão mais de 100 comunidades indígenas e quilombolas, incluindo Santa Rosa dos Pretos.

 

Como a BR, a EFC também desaloja, desmata, polui o ar, as águas, entope e assoreia igarapés.

Imagem do progresso: igarapé encanado e assoreado para construção da Estrada de Ferro Carajás.

Em 2011, o MPF instaurou uma Ação Civil Pública (ACP) contra a Vale e o Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente) para obrigar a transnacional a reparar os danos causados pela EFC e sua duplicação aos territórios quilombolas Santa Rosa dos Pretos e Monge Belo.

 

A ACP gerou um acordo, no qual a Vale se comprometia a recuperar os cursos d’água que poluiu e entupiu. Passados seis anos (2018), o acordo ainda não foi totalmente cumprido, à revelia das obrigações legais contraídas pela empresa e homologadas em juízo.

Derramou todo o sangue

Como a BR, a EFC também mata, tanto bicho quanto gente.

 

Maria Raimunda, de 70 anos, moradora de Santa Rosa dos Pretos, perdeu o filho mais velho, José Benedito Vieira dos Santos, atropelado por um trem da Vale em 22 de julho de 2009.

 

Ele trabalhava com carregamento de madeira para São Luís juntamente com dois irmãos e um amigo. Era noite já quando os quatro homens aguardavam o caminhão que carregava a madeira ir buscá-los e levá-los pra casa. Estavam próximos aos trilhos da EFC, que precisariam cruzar para ir embora.

 

José Benedito estava cansado da jornada longa e pesada, e sentia fome. Ele e os companheiros passaram o dia com dois peixes e um punhado de farinha. A água já tinha terminado.

 

Zé Biné, como era chamado, sentou-se no trilho e acabou adormecendo, a cabeça amparada pelos braços cruzados sobre os joelhos.

 

“O trem pegô ele nove hora da noite. Levaro ele pra Santa Rita, de Santa Rita foi pra São Luís, em São Luís limparo ele, enchero ele de pano, de algodão, que não sei nem como que foi. Eu nunca esperava de ver ele nessa situação… meu primêro filho. Foi um pedaço de mim que saiu. Não gosto nem de falar. Nunca teve solução nenhuma. Ele ia inteirar 28 anos, era novo. Até hoje eu me lembro a situação que ele chegô aí. Agora mesmo eu tava deitada, tava me lembrano, quando eu ia oiá ele ali no caixão, com as mão nos peito, as unha tudo suja de terra, suja de sangue. A boca dele assim… Só os irmão que viro o jeito que ele ficô lá, acho que ficô só os pedaço. O sangue derramô todo. E por isso ficô. Só quem ficô com a dor foi eu, e um vazio que nunca preenche.”

 

Maria Raimunda diz que chorou a morte do filho todos os dias durante um ano, sem falhar nenhum. Ainda hoje espera que ele converse com ela em sonhos, mas Zé Biné não aparece. “Às vezes é assim mesmo. Tem um dizer na reza que quem fica pra trás fecha as portas, e quem vai daqui quer sossego. De tudo ele vai se esquecendo, só de Deus ele vai se lembrando. E aí se acabou.”

 

De acordo com registros da Vale, entre janeiro de 2006 e três de maio de 2018, ao longo da extensão da EFC entre Pará e Maranhão, 41 pessoas foram mortas pelos seus trens.

 

Maria Raimunda diz que nunca recebeu qualquer assistência da empresa e tão pouco foi indenizada por ela pela morte do filho. Na planilha de acidentes enviada pela Vale à reportagem, Zé Biné não consta sequer como número. A morte dele não foi contabilizada pela transnacional.

 

A reportagem enviou à mineradora uma série de perguntas sobre infraestrutura de segurança para pedestres, demandas das comunidades por segurança nos trilhos, assistência oferecida pela empresa a vítimas de atropelamentos e suas famílias, a ausência de Zé Biné nas estatísticas de mortes causadas pelos trens da empresa, indenizações a quilombolas impactados pela instalação da EFC nos anos 1980, entre outros temas.

 

A Vale não respondeu a nenhuma delas. Apenas informou, genericamente, que é uma empresa comprometida com a redução do número de ocorrências em suas operações ferroviárias. “Em 2017, as ferrovias da Vale (Estradas de Ferro Vitória a Minas e Carajás) ocuparam as duas melhores colocações em ranking comparativo de índices de segurança das ferrovias brasileiras”, diz a nota oficial.

 

A transnacional também informou que mantém uma série de iniciativas para mitigar os eventuais impactos de sua operação, e que atua de forma permanente para que tanto a sinalização quanto as travessias seguras da EFC estejam sempre em boas condições de uso.

 

Afirmou, ainda, que promove a conscientização por meio de campanhas e parceria junto às comunidades, e ressalta que é fiscalizada pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) quanto a fatores de segurança ligados aos trilhos e demais estruturas operacionais, sinalização de passagens em nível, conservação da ferrovia, entre outros pontos.

Atropelo econômico

Além da BR 135 e da EFC, comem terra de quilombo e atropelam a vida preta a Ferrovia Transnordestina e cinco linhões de energia, sendo dois da CEMAR (Companhia Energética do Maranhão), empresa privada, e três da Eletronorte, empresa de economia mista vinculada ao Ministério de Minas e Energia.

 

Libânio Pires, assim como a maioria dos quilomobolas de Santa Rosa dos Pretos, sustentava a família com a roça que botava nas terras herdadas de seus ancestrais sequestrados na Guiné-Bissau no século 18 e trazidos a Itapecuru-Mirim.

 

Ele conta que botava três linhas de roça, quase 6 mil m2 de lavoura, onde se plantava arroz, milho, mandioca, pepino, tomate, batata, junça, melancia, jerimum, trigo, algodão e outras variedades.

 

O regime de trabalho era de mutirão, “mutirão bonito, de se ajuntá 60 pessoas, entre homens e mulheres.” Dinheiro quase não se via. Tudo era mesmo na base da troca dos excedentes por aquilo que faltava, fosse café, açúcar, peixe ou um pedaço de sabão. “Mais valia ter amigo na praça que dinheiro na caixa”, relembra.

A quilombola Josicléa Pires da Silva visita suas terras, herança dos antepassados da Guiné-Bissau, hoje invadidas pela Vale S.A.

Nos anos 1970, porém, o progresso branco de que fala Dos Anjos atropelou Libânio e centenas de quilombolas que viviam da terra. “Chegaram lá e disseram que iam fazer um campo de aviação, disseram pra gente não botá mais roça. Perguntei ‘quem vai pagar meu serviço?’ Disseram que depois iam pagar, mas nunca indenizaram. Eu deixei a produção. Aquilo me afetou demais”, conta o ancião, referindo-se à instalação de linhões de energia da CEMAR nas terras produtivas dos quilombolas.

Mesa vazia

Assim como na instalação da BR 135, da Estrada de Ferro Carajás e da Ferrovia Transnordestina, não houve consulta aos quilombolas, nem indenização ou mitigação de impactos na instalação dos linhões.

 

A consequência imediata e a longo prazo da expropriação das terras ancestrais por governos e empresas foi, e é, o esvaziamento da mesa dos pretos e pretas de Santa Rosa pela falta de terras para cultivar.

 

Em 2008, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), responsável pela titulação das terras quilombolas, cadastrou 326 famílias e delimitou o território de Santa Rosa dos Pretos em 7.496,9184 ha, quase 75 milhões de metros quadrados de terras – ou cerca de 11 mil campos do Maracanã.

 

Mas com todas as expropriações, incluindo a invasão das terras por latifundiários, a vida quilombola se dá, hoje, em apenas 2.178 ha, ou pouco mais de 21 milhões de metros quadrados – ou quase três mil campos do Maracanã –, divididos entre as atuais 700 famílias, ou mais de quatro mil pessoas que utilizam esse espaço para moradia, roça, criação de animais, pequenos comércios, áreas de uso comum, como clubes, igrejas, terreiros, casas de farinha, escolas e campos de futebol, e áreas de preservação de matas e igarapés.

 

Hoje, o que se planta no que sobrou de terras produtivas no quilombo já não é suficiente para o sustento da família que cultiva, muito menos para trocar ou vender excedentes.

 

O que se tinha em abundância, fresco e de graça, hoje se compra a preço alto nos mercados da cidade, e com baixíssima qualidade: frutas, legumes e verduras que crescem fora de época e maturam antes do tempo não são obra da natureza, mas do veneno da indústria, esse aditivo cuja função é manter a roda capitalista girando cada vez mais rápido, à revelia do ritmo real da vida.

 

Nos anos 1980 foi a vez da Eletronorte instalar três linhões no território e repetir nas terras e nos corpos dos pretos de Santa Rosa a mesma violência colonial que, segundo Dos Anjos, é o padrão das relações raciais no Brasil.

 

“Santa Rosa, até algumas décadas atrás, era um espaço onde as pessoas negras cultivavam suas vidas do modo como historicamente lhes foi legado, de geração a geração. Em um certo momento, o Estado precisa instalar linhões que podem possibilitar uma certa economia da eletricidade se passarem por um certo espaço. Se fosse um espaço de propriedade branca, implantar linhões implicaria numa indenização monumental para o proprietário, cujo direito à propriedade é reconhecido. Mas no caso de Santa Rosa, são pessoas negras as donas, e por serem negras, fica muito mais fácil se passar os linhões, pois é como se essas pessoas não estivessem ali, como se não fossem dotadas das mesmas prerrogativas de um proprietário branco. No Brasil inteiro as relações estão conformadas por esse padrão, que é estrutural, e é assim que se pensa a relação com o negro, com o corpo negro e com espaço negro, como sendo permeada por uma relação de cegueira institucional padronizada.”

 

Do sequestro na Guiné-Bissau à expropriação sistemática de suas terras e corpos no Maranhão, a vida preta em Santa Rosa ainda resiste, à revelia do buraco branco que tudo devora sem se dar por satisfeito.