Reportagens

Fotos: Andressa Zumpano

Cosmologia quilombola: o mundo preto tem mais vida?

Maria Dalva (esq.) e Josicléa: duas gerações de mulheres que nutrem e protegem a casa dos Encantados de Santa Rosa dos Pretos.

 

A ideia de modernidade é uma ideia de morte. Mas a morte branca é ruim, a morte preta é diferente. Na morte preta a gente consegue entender outras relações, consegue entender o contato com outros mundos. Mas a morte branca é só morte. Não há vida na morte. E pra gente não serve. Se é um moderno que só mata e não tem vida, não vale. Porque na morte preta há vida, ainda assim.”

 

Josicléa Pires da Silva, 24 anos, é uma das muitas vozes do quilombo Santa Rosa dos Pretos que se opõem à duplicação da BR 135 pelo DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes) e também da Estrada de Ferro Carajás (EFC), da mineradora Vale.

 

Ela entende que esses empreendimentos são “a morte em vida”, são a modernidade branca que des-envolve, que secciona corpos vivos – árvores, igarapés, bichos e núcleos familiares – para assentar sobre eles centenas de quilômetros de asfalto e ferro inertes.

 

Para Josicléa, a modernidade branca é incapaz de dar bons frutos, porque seus projetos de progresso são como um tronco morto e vazio, sem a copa que beija e busca força no sol, e sem as raízes que o nutrem com água e o vinculam à terra.

 

No caso da duplicação da BR 135, a morte em vida apontada pela quilombola significa a extinção do próprio quilombo Santa Rosa dos Pretos, uma vez que o DNIT pretende eliminar 345 casas em um trecho de cerca de oito quilômetros que correspondem ao quilombo – praticamente a totalidade dos imóveis que são margeados pela BR, incluindo igrejas, terreiro de Mina, casa de farinha, clube comunitário, comércios familiares e pés de árvores frutíferas.

 

A morte em vida significa, ainda, a expulsão dos pretos e pretas de Santa Rosa das terras que ocupam há mais de três séculos, e a expulsão dos Encantados, entidades espirituais que são donas primeiras e atemporais do quilombo.

 

Se as estratégias coloniais de expropriação da terra e do corpo preto se perpetuam ainda hoje no quilombo, as estratégias de resistência dos quilombolas também emergem, e remontam às vivências de seus antepassados escravizados.

Simaumeira do quilombo Sítio Velho, no território Santa Rosa dos Pretos: árvore sagrada é vínculo com os antepassados escravizados.

A relação de envolvimento com a natureza, em oposição ao des-envolvimento capitalista; a relação pessoal com as matas e igarapés, em oposição ao extermínio dessas vidas para o progresso passar; a relação prática e cotidiana dos viventes visíveis com os Invisíveis (ou Voduns, ou Encantados, ou Guias de Luz) em oposição à visão branca sobre essas entidades enquanto elementos do folclore: tudo isso é a cosmologia preta, uma força que a modernidade branca não entende e nem alcança.

O Invisível nos atravessa

O quilombo tem muita força por causa dos Invisível de luz. Esses é quem traz força dentro do quilombo. Eles têm a força igualmente a dos santos. Que eles traga força pra que nós viva dentro do quilombo e combata esse povo que vem aí atormentando nossa vida”, declara Severina Silva, 64 anos, Mãe de Santo do terreiro de Mina “Tenda Nossa Senhora dos Navegantes”.

 

Todos os dias, ela e suas filhas e filhos de santo alimentam os Encantados com luz de velas, oração e respeito.

 

Os Encantados vivem no quilombo, nas matas e igarapés. Por isso a derrubada de uma árvore ou o assoreamento de um curso d’água podem causar um desequilíbrio imensurável ao quilombo e seus moradores: elimina-se a casa do Encantado, ele deixa o quilombo, e com ele vai embora a força que antes sustentava os pretos e pretas de Santa Rosa.

 

Eles gosta de tá na mata, dentro dos mato. Aí o povo vem e desmata e nós fica sem força, porque eles vão simbora pra outro lugar. E os igarapé também tem muitos Guias que vive dos igarapés, que é a Mãe D’Água. Por isso a gente não quer que tira água, que cava na beirada do igarapé, que fica aterrando o igarapé, porque tem Guia, tem Encantado, Espírito de Luz que vive dentro dos igarapés. Então a gente quer conservar”, diz Mãe Severina.

 

Severina Silva, Mãe de Santo do terreiro de Mina, é força espiritual do quilombo. Atrás dela, o pequizeiro centenário que nutre corpo e espírito.

Questionada sobre qual a relação dos Encantados com a luta pela defesa do território, ela devolve a pergunta em forma de proposta. “Num festejo de Encantados, você vem aqui e pergunta diretamente pra eles.”

 

A Libânio Pires, 84 anos, os Encantados têm respondido. “Se você não fizer algo pelos igarapés que estão morrendo, nós vamos nos retirar daqui”, disseram a ele durante um sonho. “Mas se eu eu não enxergo, o que posso fazer?”, perguntou o ancião, quase cego pelo glaucoma. “Somos nós que estamos te mostrando os igarapés.”

Encantoria cotidiana

A relação entre os Encantados e os quilombolas na defesa do território é entranhada. Está nas inspirações, nas intuições, nas doutrinas de Mina, que são cânticos inspirados pelas entidades espirituais nos seus filhos e filhas de carne e osso.

 

Está no cuidado e respeito da mata, dos cursos d’água e dos bichos do mato. Respeito e cuidado que não se encontram nas relações de exploração que empresas e governos estabelecem quando cravam grandes obras nas terras de pretos e povos originários.

 

Anacleta Pires da Silva, 52 anos, filha de Libânio, conta que quando era pequena, logo pela manhã, seu avô e, mais tarde, também seu pai, chegavam em casa ensopados das rondas que faziam mata adentro, mesmo em período de chuva, para ver as condições da natureza.

 

“Meu pai era o guardião dessas matas tudinho, caminhava muito pelo território todo, conhecia todos os limites”, ela conta.

 

Josicléa, filha de Anacleta e neta de Libânio, coordena hoje um grupo de mais de 30 jovens batizado de Agentes Agroflorestais Quilombolas (AAQ). O grupo dedica-se a replantar mata nativa à beira de igarapés assoreados e a preservar locais e elementos naturais sagrados do quilombo, como um juçaral, pequizeiros, nascentes de igarapés, poços d’água, simaumeiras e gameleiras.

 

“Eles deixam a gente morar na casa deles, e é a casa deles que a gente preserva”, explica Josicléa, referindo-se aos Encantados donos de Santa Rosa dos Pretos.

 

A relação entre os quilombolas e os Encantados também está nos festejos e nos pagamentos de promessas; está no plantar e colher, no pescar, no preparar a comida, está no cantar e no dormir – o sonho é terreno de encontros frequentes entre os daqui e os de mais além; está nas obrigações das filhas e filhos das entidades espirituais para com elas.

 

Mãe Severina diz que não vai para as vias de fato da luta, mas faz os trabalhos para proteger quem vai. “Pra ser sincera, por mim esse povo não passa aqui. Por mim essa estrada não passa”, determina, referindo-se à duplicação da BR 135, que ameaça o terreiro de Mina do quilombo e o pequizeiro centenário cravado diante dele.

“Porque Mãe D’Água gosta”

Para quem tem fé e respeito, nenhuma demanda fica sem resposta, porque a Natureza, mãe e casa dos Encantados, não se deixa ganhar em generosidade.

 

Maria Dalva Pires Belfort, 55 anos, filha de santo, construiu um poço artesiano em sua casa para servir de fonte de água a quem precisasse. Quando o verão chega e seca as caixas d’água do quilombo, é na casa dela que buscam água para beber e cozinhar; é lá que tomam banho e lavam roupa.

 

O poço tem mais de 30 metros de profundidade, e foi ela mesma quem indicou ao perfurador onde cavar. “Dona Dalva, daí não sai água”, disse Manoel das Chagas Aires da Silva, perfurador de poços, ao avançar chão adentro com a broca e encontrar a terra seca seca. “Sai sim, meu filho, pode continuar”, ela assegurou.

 

— À noite comprei um vinho e despejei no poço.

— E por que vinho, dona Dalva?

— Porque Mãe D’água gosta.

No dia seguinte, a água brotou.

A coletividade nos aglutina

Receita de molho, chibel ou môi: pega-se uma travessa, um prato, um pote ou uma bacia – o que for maior – e coloca-se nela bastante tomate picado, coentro, cebola, pimenta, sal, suco de limão e água. Adiciona-se farinha d’água para engrossar um pouco o caldo, só um pouco, porque o môi é de beber, não de comer.

 

Depois, coloca-se o recipiente de môi no centro da mesa, dispõem-se as colheres para os comensais e chama-se todo mundo que estiver na casa, e eventualmente fora dela, para beber junto o alimento – recomenda-se gritar no quintal que o môi está pronto. “Môi bom só presta é com muita gente”, diz Maria Dalva.

 

Se no quilombo o preparo da comida e o comer são coletivos, o ato de beber o môi – um tipo de refresco salgado e energético –, expressa essa coletividade de maneira gráfica: todas e todos em volta da bacia com a bebida apimentada mergulham suas colheres simultaneamente em busca de pedaços de tomate, cebola e porções de farinha.

Benedito Pires Belfort saboreia jaca nascida no quilombo. Relação com a terra e com seus frutos é de pertencimento e precisão, não de lucro nem de acúmulo.

Importante que o môi não sobre; importante que se beba muito; importante que bebam todas e todos ao mesmo tempo.

 

No quilombo, a coletividade aparece como eixo estruturador de micro e macro relações: do plantio e colheita coletiva nas roças às reuniões da comunidade para estabelecer demandas comuns junto ao poder público; das viagens feitas em grupo para apresentar a caixa do Divino e o tambor de crioula em povoados e cidades vizinhas ao entendimento do território quilombola como propriedade coletiva; dos mutirões para construir casas aos levantes coletivos para tombar as cercas dos latifundiários que invadem as terras dos pretos.

 

A luta contra as violações cometidas pelo DNIT tem sido marcada pela coletividade das ações e pela relação de irmandade entre quilombos vizinhos: os territórios Santa Rosa dos Pretos e Santa Maria dos Pinheiros, em Itapecuru-Mirim, e o território Joaquim Maria, em Miranda do Norte, realizam juntos atividades de formação política para o enfrentamento do racismo institucional da autarquia federal.

 

“Os quilombolas são contrários a essa ideologia de desenvolvimento, pois para eles o envolver (unificar), é a forma mais digna de resistir e confrontar a lógica destrutiva do sistema capitalista, no qual são lesados, violentados e forçadamente ‘incluídos’ como moeda de troca do Estado brasileiro. Os povos tradicionais não são moedas de troca nem tão pouco subordinados do Brasil”, escreveu Josicléa em sua monografia de conclusão da licenciatura em Pedagogia da Terra, defendida em 2017 na Universidade Federal do Maranhão.

 

“Território quilombola significa a união de povos com histórias semelhantes e toda uma identidade envolvida e compartilhada; (…) o desenvolvimento só é possível quando há envolvimento entre os seres.”

A ancestralidade nos mantêm existindo

A ancestralidade que atravessa e conforma as relações no quilombo vai além dos laços sanguíneos. É uma memória histórica, viva e encarnada, que se atualiza cada vez que se dança o tambor de crioula, que se paga uma promessa ao Divino, que se abate um boi ou um porco para dar de comer ao povo em um festejo, cada vez que um Encantado rodopia no terreiro de Mina sobre o seu cavalo.

 

“Meus parentes”, “nossos parentes”, “aqueles que nos antecederam”, “os pretos e pretas que vieram antes de nós”. A ancestralidade que conecta os quilombolas de hoje aos escravizados e escravizadas trazidos da Guiné-Bissau ao Maranhão nos séculos 18 e 19 é testemunha do passado e garantidora do presente, é vínculo que dá coesão e continuidade ao quilombo.

 

Não à toa, a mineradora Vale S.A., na época em que iniciou a duplicação da EFC, e mais recentemente o DNIT, em seu empenho em duplicar a BR 135 passando por cima de quilombos, colocaram e colocam em dúvida a ancestralidade identitária dos quilombolas de Santa Rosa e de outros quilombos para enfraquecer a luta desses povos.

Josicléa diz que nesta casa, o tempo parou. O casal que morava nela “voltou para casa” e levou o tempo com eles.

Em 2009, a Vale interpôs recurso administrativo na Justiça contestando o processo de regularização fundiária do território quilombola de Santa Rosa dos Pretos.

 

Em 2018, o DNIT enviou à Defensoria Pública do União (DPU) um ofício contestatório no qual alega ter “especial atenção aos anseios das comunidades possivelmente afetadas pelo empreendimento [a duplicação da BR 135]; entretanto, este DNIT não pode acatar pleitos de pessoas que se ‘auto-intitulam’ quilombolas para paralisar as obras em áreas que eles próprios definem como sendo quilombolas (…)”.

 

Além de desconhecer que quilombola não é título, mas identidade, a autarquia federal também demonstra desconhecer o critério de autoidentificação, que é o que permite a definição da identidade quilombola por um grupo social e, consequentemente, a definição de uma comunidade enquanto quilombola.

A força de contar a própria história

Por isso, em um contexto de opressão e violência, as palavras e narrativas têm potência de arma e proteção de trincheira.

 

Na fala de muitos quilombolas de Santa Rosa dos Pretos, a Vale e o DNIT são os verdadeiros invasores, e não donos das terras por onde passam os trilhos da EFC e a BR 135; as pretas e pretos de Santa Rosa nunca foram escravos, mas escravizados, e esses escravizados não eram analfabetos, apenas não falavam a língua do opressor.

 

As comunidades quilombolas não estão “às margens” da estrada de ferro e nem da BR: é a estrada de ferro e a BR que, de forma violenta, passam por dentro das comunidades quilombolas.

 

Quando fecha rodovias e ferrovias em protesto, o povo de Santa Rosa não ocupa esses espaços, e sim acampa em terras que são suas – “ocupa-se o que é do outro, onde é nosso a gente acampa”, diz Josicléa.

 

E mais: “quilombo não é lugar de preto fugido. Se a gente estava buscando a liberdade, como podia estar fugindo? Quem fugia eram os portugueses quando vieram pra cá”, ela afirma.

 

No quilombo Santa Rosa dos Pretos, a história do “suposto” barão – assim mesmo, “barão” entre aspas – é contada de tal forma que o protagonismo é dos oprimidos, não do opressor.

 

“Dizem que ele doou as terras aos meus parentes, mas desde quando ele foi dono dessas terras?”, pergunta Josicléa ao falar sobre Joaquim Raimundo Nunes Belfort (1820-1898), o “suposto” barão de Santa Rosa, “dono” da Fazenda Santa Rosa, que hoje é o território Santa Rosa dos Pretos.

 

As terras que hoje abrigam Josicléa, seus pais, irmãs e irmão e outras 750 famílias nunca foram de Joaquim nem de seus antepassados irlandeses. Porque a terra, para os quilombolas, é de quem cuida dela, de quem planta e mora nela, de quem com ela se envolve, no sentido mais entranhado da palavra.

 

Portanto, as terras sempre foram dos parentes de Josicléa, pretas e pretos sequestrados na Guiné-Bissau que regaram com sangue e suor o chão de Santa Rosa.

 

E essa história quem narra são eles, descendentes diretos de escravizados e escravizadas que permaneceram aquilombados nas terras, resistindo ao aniquilamento material suas vidas e ao silenciamento de suas subjetividades.

Visíveis ou invisíveis, os pretos e pretas seguem e seguirão no quilombo, neste tempo e mais além. Porque são os vivos.

“Eles sabem que eu sou viva. Eles sabem que nós somos vivos. Eles buscam a todo custo trazer a ideologia de que o empreendimento é bom, porque eles querem matar o único resquício de vida que ainda há, porque eles também já estão mortos”, diz Josicléa, referindo-se ao DNIT, à Vale e aos seus empreendimentos.

 

“Eles vêm tentando isso há 518 anos, mas não vão nos matar. Vamos continuar re-existindo. Se não for nessa carne, matéria podre, a gente vai re-existir em outros espaços, em outros mundos não visíveis. Mas vamos estar aqui, vamos estar aqui.”